Um canal entre professor e alunos com o objetivo de facilitar o aprendizado em Língua Portuguesa contendo:vídeos, áudios, textos, atividades, etc. Além disso, pretendo expor algumas produções dos alunos, pois são autores incógnitos que durante o ano letivo nos encantam com seus sonhos e visões de mundo, manifestados em verso ou prosa.
Fica no extremo da rua o Grupo Escolar, de
modo que a meninada passa e repassa à frente da minha janela. Notei que muitas
crianças sofriam dos pés, pois traziam um no chão e outro calçado. Perguntei a
uma delas:
__ Que doença de pés é essa? Bicho
arruinado?
O pequeno baixou a cabeça com acanhamento,
depois confessou:
__ É inconomia.
Compreendi. Como nos grupos não se admitem
crianças de pé no chão, inventaram as mães pobres aquela pia fraude. Um pé vai
calçado, o outro, doente do imaginário mal crônico, vai descalço. Um par de
botinas dura assim por dois. Quando o pé de botina em uso fica estragado,
transfere-se a doença de um pé para outro, e o pé de botina de reserva entra em
funções. Destarde, guardadas as conveniências, fica o dispêndio cortado pelo
meio. Acata-se a lei e guarda-se o cobre.
Benditas sejam as mães engenhosas!
PROPOSTAS DE ATIVIDADES
1) Reescrever a história do ponto de vista de um dos personagens. 2) Simular um diálogo entre os alunos sobre a
situação vivenciada.
3)Criar umrelato do personagem carente do conto.
4) Escrever outro conto que mostre outros problemasvivenciados em uma escola localizada em
umbairro de classe alta.
5)Resumiro texto.
6)Descrever a escola de
forma objetiva.
7) Imaginaruma conversa
entre os alunos e escrevê-la.
8)Elaborar um documento
que represente as normas escolares da referida escola.
9)Elaborar umabaixo-assinado no qual as mães protestam
contra as normas escolares.
10) Elaborar uma entrevista com o diretor da escola.
11) Denunciar o fato através de uma notícia de jornal.
12) Apresentar argumentos a favore contra a rigidez das normas escolares
através de um artigo de opinião.
13) Pesquisar no ECA os direitos da criança e do adolescente,
comparar com a situação do conto e elaborar um textoargumentativo indicando quais artigos foram
desrespeitados.
14)Elaborar uma paródia do conto.
15) A partir do conto, enumerar alguns temas e desenvolver uma
crônica argumentativa.
16)Elaborar um bilhete
do pai de um dos alunos para o diretor da escola fazendo uma reclamação sobre
as normas escolares.
17) Elaborar uma carta do narrador para o diretor
posicionando-se contra as normas escolares.
18) Elabore a resposta da carta do diretor para o narrador.
19)Elaborar um texto
poéticoou acróstico sobre oconto.
20)Transforme o conto
num poema de cordel.
21) Elaborar um gibi com o enredo do conto.
22)Elaborar uma tira
ouchargeque retome o tema do conto.
23) Criar uma propaganda sobre a escola. 24) Escrever como seria um discurso de um político sobre o fato. 25) Escrever como o jornalista Gil Gomes relataria esse fato em um programa de rádio. 26)Criar e ensaiar uma peça de teatro baseada nesse conto e apresentá-la na sala.
27) Produzir um filme a partir doconto.
28)Pesquisar sobre vida e obra de Monteiro Lobato e escrever uma biografia.
29)Produzir uma resenha crítica sobre o conto.
30) A partir do conto, enumerar alguns temas para um debate em sala de aula. 31) Elaborar um Emailpara o autor do conto (Monteiro Lobato), opinando sobre a obra.
32) Criar um blog com fórum e debater o tema do conto.
33) Divulgar o fato do conto em redes sociais compostagens verbais e não verbais (Facebook) e em comunidade(Orkut) e observar a reação das pessoas. Obs. Essa atividade foi elaborada por mim há vários anos, embora nessa útlima versão eu tenha feito algumas alterações acrescentando mais itens. Entretanto aparece em vários blogs porque eu passei para várias amigas nos cursos em que fizemos e elas postaram.
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescaria e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto do esbarro. E nunca falou mais palavras, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma contida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça pra ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”, o que não era o certo, exato, mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão do seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-quedisseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor, vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: Primeiras estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
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Nas águas do tempo
Mia
Couto
Meu
avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele
remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito
cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco
desabandonado.
-
Mas vocês vão aonde?
Era
a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo
indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada
falarem.
-
Voltamos antes de um agorinha, respondia.
Nem
eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o
assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele
me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a
de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à
frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O
avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de
viver.
Entrávamos
no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa
solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos
lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha, E eu lhe imitava.
-
Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era
sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer
desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem.
Depois
viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o
lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava
de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra.
Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os
únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no
suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens.
Tudo
em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a
manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que
parecia-mos perfeitos.
De
repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava
fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com
decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por pinte,
vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
-
Você não vê lá, na margem? por trás do cacimbo?
Eu
não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
-
Não é lá. É lááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?
Para
mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se
perde.
Meu
velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E
regressávamos, viajando sem companhia de palavra.
Em
casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos
futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam.
Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos. Mas
depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
-
Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte…
O
namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho,
uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o
moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que,
ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele,
avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
Certa
vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos
panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o
primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia
haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu
espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não-firme.
-
Nunca! Nunca faça isso!
O
ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão
bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um
pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
-
Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.
Eu
tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me
equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei
nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me
puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação,
o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim,
lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou
o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.
-
Cumprimenta também, você!
Olhei
a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então,
deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O
remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e
respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao
amarrar o barco, o velho me pediu:
-
Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
Nessa
noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para
lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim:
nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos.
O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses
outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E
assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que
você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.
-
Me entende?
Menti
que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à
beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora.
O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas.
Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, bem o avô não via mais que a
enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
-
Fique aqui!
E
saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos
territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa
ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a
alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se
declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto,
tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura
atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo
sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do
mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do
pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o
aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então,
lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele
se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se
poentaram as visões.
Enquanto
remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu
velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu
acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio
volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando vislumbrar os brancos panos da
outra margem.