Narrador observador:
“Era uma vez em Felicidade um velho tão
unha-de-fome que andava uma semana com o chinelo esquerdo, pé direito com
sapato - para ninguém dizer que ele era pobre. Depois andava outra semana com o
chinelo direito, o pé esquerdo com sapato: chinelo é mais barato e, assim, os sapatos
duravam anos. Até que um dia ele morreu, sem desconfiar que aquela dor nas
costas era de andar com um pé mais alto que o outro.(Domingos Pellegrini: “A
árvore que dava dinheiro”)
Narrador onisciente:
“Se o ronco de um
quadrimotor rompe a calma da manhã, os olhos da velhinha se erguem assustados
do canteiro de couves para o céu (...) e então ela olha para os canteiros, seus
canteiros, que ela rega toda manhã e de tempos em tempos cava com a enxadinha e
semeia, ela olha e tem medo, seu coração, que já morreu em muitas mortes e que
sempre ressuscitou com a valentia de uma planta rebelde, parece agora temer
coisas jamais vistas, coisas obscuras e terríveis que lhe anunciam o ronco do
avião sobre sua cabeça, as notícias que os olhos, num intervalo do croché, vão
tentando decifrar no jornal largado sobre a mesa, ou os ouvidos atentos
recolhem das conversas.” (Luiz Vilela: Preocupações
de uma velhinha)
Narrador intruso:
Que me conste, ainda
ninguém relatou o seu próprio delírio; faça-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se
o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais pode saltar o
capítulo; vá direto a narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe
digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte
a trinta minutos. (Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Narrador testemunha:
A caminho de casa, entro num
botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou
adiando o momento de escrever (...)Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos.(...) Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que
discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na
cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. (Fernando
Sabino: “A Última Crônica)
Narrador Protagonista:
"Era um menino triste.
Gostava de saltar com os meus primos e fazer tudo o que eles
faziam. Metia-me com os moleques por toda parte. Mas, no fundo, era um menino
triste. Às vezes dava para pensar comigo mesmo, e solitário andava por debaixo
das árvores da horta,
ouvindo sozinho a cantoria dos pássaros." (José Lins do Rego: “Menino do
Engenho”)
Narrador modo dramático:
-- É bom
mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
-- Sei dizer não senhor: não tomo café.
-- Você é dono do café, não sabe dizer?
-- Ninguém tem reclamado dele não senhor.
-- Então me dá café com leite, pão e manteiga.
-- Café com leite só se for sem leite.
-- Não tem leite?
-- Hoje, não senhor.
-- Sei dizer não senhor: não tomo café.
-- Você é dono do café, não sabe dizer?
-- Ninguém tem reclamado dele não senhor.
-- Então me dá café com leite, pão e manteiga.
-- Café com leite só se for sem leite.
-- Não tem leite?
-- Hoje, não senhor.
(Fernando Sabino: “Conversinha Mineira”)
Narrador câmera:
“Uma sombra no chão, um seguro que se desvalorizou, uma gaiola de
passarinho. Uma cicatriz de operação na barriga e mais cinco invisíveis, que
doem quando chove. Uma lâmpada de cabeceira, um cachorro
vermelho, uma colcha e os seus retalhos. Um envelope com fotografias, não
aquele álbum. Um canto de sala e o livro marcado. Um canto de sala e o livro
marcado. Um talento para as coisas avulsas, que não duram nem rendem. Uma
janela sobre o quintal, depois a rua e os telhados, tudo sem horizonte.” Ricardo Ramos: “Circuito Fechado”)
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